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De repente, Maria apareceu aos prantos na sala. Entre lágrimas e choros, quase sem conseguir falar, Maria disse que Tuta tinha morrido… Foi na segunda-feira de noite. Tuta, diminutivo de Batuta, uma schnauzer que demos a ela quando tinha seis anos. Demos, eu e minha ex-esposa, que não é a mãe da Maria. E, bem… […]

De repente, Maria apareceu aos prantos na sala. Entre lágrimas e choros, quase sem conseguir falar, Maria disse que Tuta tinha morrido… Foi na segunda-feira de noite.

Tuta, diminutivo de Batuta, uma schnauzer que demos a ela quando tinha seis anos. Demos, eu e minha ex-esposa, que não é a mãe da Maria.

E, bem… a razão de estar aqui hoje, contando a história dessa cadelinha, se deve a todo um sentido de família que foi construído ao redor da Tuta, entre idas e vindas, mágoas e amizades, mas, sobretudo, amor a uma criança.

Quando me casei com Natasha, Maria tinha quatro anos. Pelos rumos da vida, nós dois tínhamos uma vida muito boa e tranquila, capaz de proporcionar tudo de bom para Maria. Naquele momento, ela era a única dos cinco filhos que tenho hoje, então, naturalmente, era alvo de todos os mimos e dedicações.

Lembro de certo Natal em que perdemos a mão e fomos, de presentinho em presentinho, comprando um muitão de coisas para ela. Foi tanto presente que os abrir se tornou algo automático e mecânico, sem tanta emoção. A criança se perdia na quantidade.

Além daquele tradicional “estragar a criança”, acontecia outra coisa por conta da nossa fartura desmedida.

Sempre fui muito amigo da mãe da Maria. Sempre tivemos margem para conversar sobre nossa filha, as dificuldades da vida, sobre planos. Um dia, após esse natal, Priscilla me procurou para desabafar.

Se sentia triste porque não tinha como proporcionar aquilo à filha. Maria deixava transparecer, sem qualquer maldade, que era o pai, mais Natasha, os responsáveis pelos melhores presentes, as melhores viagens, as melhores coisas e momentos.

Lembro que, naquele tempo, a mãe de Maria começava sua vida, reiniciava seus estudos, procurava emprego e aquela situação não impositiva magoava.

Mesmo que não houvesse qualquer tipo de enfrentamento ou competição, aquela sensação a fazia sentir fracassada diante da filha, justo quando precisava sair de casa vitoriosa, todos os dias, para enfrentar as dificuldades da vida.

Feito o desabafo, comentei com Natasha. Achei importante conversar e tentar fazer uma espécie de mea culpa, de reflexão sobre como agíamos com Maria e o que isso podia significar em esferas que nem imaginávamos.

Aqui, vale uma observação sobre a Natasha: ela é louca por cães. Desde que a conheci, ter cachorros faz parte de sua natureza. Ter cachorro, para ela, significa amor maior.

Por isso, Natasha planejava, fazia tempo, dar um cachorrinho para Maria, firme na crença de que toda a criança merece ter um filhote.

Foi então que algo estalou na cabeça dela:

“Vamos comprar o cachorro para Maria, mas damos para Priscilla entregar, para ela dar o cachorro como se fosse presente dela.”

Porque, dar um cachorro a uma criança, suplanta qualquer presente. Não existe casa de Barbie, bicicleta ou vídeo-game que supere a emoção de ganhar um filhote, amigo seguro para um todo de vida.

Daí em diante, Natasha se dedicou a encontrar um filhote para Maria, e não demorou a encontrar a schnauzer que mencionei acima. Lembro que pagamos caro por ela, num tempo em que não éramos tão conscientes acerca da adoção, a cachorrinha filhote mais linda que já vi.

Combinamos tudo com Priscilla, compramos uma cestinha linda de vime, lacinhos, ração, pratinho de água e comida, coleira, tudo que era preciso e, no dia acertado, nos encontramos na portaria do prédio onde Maria morava com sua mãe e entregamos o tesouro.

Priscilla subiu para dar o presente e fomos embora. Horas depois, voltamos e vimos a criança correndo feito azougue pela casa, correndo com seu filhote que latia e perseguia, morrendo mais ainda de paixão pela mãe, responsável pelo presente mais legal de sua vida.

Naquela hora não havia mais a enormidade do Natal anterior. Naquela hora não havia viagem, programa bacana, nada. Era somente Maria e Batuta, sua cadelinha, mais uma admiração incontida pela mãe, mais o olhar orgulhoso de Priscilla.

Naquele dia todos fomos vitoriosos. Batuta, ou somente Tuta, ou Tutinha, representava aquilo: nossa vitória como família. Porque família é tudo isso, principalmente quando gira ao redor de uma criança amada.

Não há espaço para orgulhos, para méritos ou medalhas. Não há tempo a se perder, muito menos perda de tempo com bobagens de espírito. O que importa é o momento de ser feliz.

Maria sempre foi muito feliz com sua cachorrinha. Com quatro irmãos do lado daqui, mais dois irmãos do lado de Priscilla, jamais se perdeu em mimos que nem mais existiam, na divisão igualitária de afetos. E hoje, com 19 anos, chora a morte da Tuta ciente de todo o amor que sempre teve, amor que a cadelinha representou tão bem.

Meu casamento com Natasha terminou logo depois, mas jamais findou minha admiração pelo ser humano indescritível que ela é. Considero, hoje, que somos excelentes amigos.

E Priscilla se casou, se formou, é advogada e professora hiper respeitada, num mundo em que não existe quem não fale de sua honestidade e correção. Teve mais dois filhos lindos e, nem preciso dizer, ganhou os prêmios grandes da vida por seu esforço e inteligência de sempre.

E Maria? Bem, entre casamentos e descasamentos meus, Maria diz que tem muitas mães.

Sua Priscilla.

Natasha, que ela afirma ser sua segunda mãe, por antiguidade.

Lívia, minha esposa, que não para de pensar na Maria um segundo sequer.

Os 15 anos de Maria foi viajando pela Europa com seu mano Carlos e sua segunda mãe, Natasha, que na época fazia mestrado em Portugal. Anos depois, ela soube da história por trás de seu presente e só sentiu mais amor por tudo.

Família.

Tuta representava família, um laço gigantesco que jamais se rompe.

E, mesmo que esse texto seja escrito por um pai, para o Papo de Pai, falando quase tudo sobre mães, não se pode negar que a construção desse elo é de todos.

A consciência da grandiosidade desse ente, a família, fruto de amor e acolhimento, tem que ser de todos, em uma construção sem inimigos, sem orgulhos vãos, sem brigas por méritos ou pequenas mesquinhas “vitórias”. Ainda mais quando se tem, no núcleo da família, crianças. Filho de mãe e pai. Mães e pais.

Morreu Tutinha, mas não morre jamais o que ela representou. Que seja feliz no céu dos cachorros, o tanto quanto foi feliz ao lado de nossa Maria.

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