5 minutos de leitura

Desde que conheci Lívia, em outubro de 2013, me tornei um pouco marajoara. Minha esposa não nasceu no Marajó, mas, talvez, seu coração esteja enterrado lá. Como tornarmo-nos cada vez mais próximos e apaixonados, também se tornou próximo meu amor pela ilha e por nossa praia deserta, a vila de pescadores onde meus sogros estabeleceram […]

Desde que conheci Lívia, em outubro de 2013, me tornei um pouco marajoara. Minha esposa não nasceu no Marajó, mas, talvez, seu coração esteja enterrado lá.

Como tornarmo-nos cada vez mais próximos e apaixonados, também se tornou próximo meu amor pela ilha e por nossa praia deserta, a vila de pescadores onde meus sogros estabeleceram uma casa pequena, e que passou a ser destino certo em fins de semana, feriados e férias.

Nossa lua de mel, inclusive, foi lá.

Disso tudo, e da naturalidade de relacionamentos saudáveis, em que uma das partes já tem filhos, minhas crias também começaram a pisar naquelas terras de rios gigantes e paisagens a perder de vista. Mas não todos os meus filhos.

Se tornaram um pouco marajoaras Maria Fernanda e Carlos Henrique. E, quando nasceram do ventre de Lívia, Íris e Vicente.

Mas, dos dias felizes que passávamos lá, uma falta me marcava de forma constante: minha Letícia.

Letícia partiu de Belém em dezembro de 2014 para morar na distante Florianópolis.

Ver minha filha sempre foi um esforço tremendo, que envolvia uma série de esforços conjuntos ao meu redor. Eram colegas de trabalho, que sem qualquer necessidade assumiam mais do que deviam para me dar um dia a mais ao lado da filha; eram os filhos daqui, que assumiam a saudade para que a irmã tivesse sempre o pai presente; era Lívia, assumindo a casa e os demais pequenos de forma exclusiva, para um final de semana ao lado de Letícia, em Santa Catarina; ou meus pais, com milhas e diárias, tentando sempre ajudar da forma que fosse.

E assim foi, de 2016 até agora, abril de 2020, quando Letícia voltou a morar em Belém, para minha gigantesca alegria.

Antes disso, nunca calhou, nas breves vindas de minha filha a Belém, de conseguirmos ir ao Marajó. Ou sua estadia era muito curta, ou havia compromissos que impediam nossa ida, ou surgia alguma dificuldade de última hora.

Enquanto isso, ao me deslumbrar com o rio que transborda na porta de casa, ou com os filhos correndo e gritando felizes pelo quintal, meu pensamento sempre estava nela, na filha que morava distante e que não fazia parte daquela vivência, ao menos fisicamente.

Quando recebi a notícia, no meio da pandemia, de que Letícia voltaria a morar em Belém, a única coisa que pensei foi justamente isso, a possibilidade de vê-la no quintal descobrindo os pássaros e frutas, vendo o peixe chegar e comendo o churrasco do papai. Na última sexta-feira, 10/07, finalmente esse dia chegou.

Como meu trabalho não para, Lívia foi passar o resto do isolamento com as crianças no Marajó. Pela primeira vez Letícia aportou nesse pedaço de mundo que também é dela.

Minha filha se deslumbrou com a simplicidade de tudo, com o isolamento de não termos vizinhos e com as praias desertas e desconhecidas, mas, sobretudo, com a quantidade enorme de amor que a esperava.

Entre descobertas no quintal, colhendo acerolas e tirando coco das árvores, entre banhos de piscina ou nas águas barrentas que lambem nosso quintal, desabei a falar das tantas vezes que pensei nela ali, junto aos irmãos, fazendo mil estripulias enquanto eu, pai apaixonado, observaria a tudo, deslumbrado.

Se há algo que aprendi nesses curtos 42 anos é não idealizar situações – o que, nesse caso, foi absolutamente impossível.

Letícia esteve no Marajó e de lá jamais sairá.

Ela teve medo dos insetos, viu sapinhos verdes pulando pelo mato, comeu pão caseiro e churrasco do pai, banhou na piscina de noite e se cobriu de areia. Fez amizade com um filhote de vira-latas que mora conosco, analisou um grilo gigantesco e dormiu embalada pelos barulhos da mata.

No meio da madrugada a menina acordou amedrontada com o escuro da noite sem lua, e com o farfalhar das folhas batidas pelo vento. Letícia pediu para deitar comigo na cama e se aninhou em meus braços. Mesmo esgotado, em quase desmaio de corpo cansado das correrias do dia, resisti ao sono e fiz minha filha dormir enquanto acarinhava seus cabelos encaracolados.

Meus dedos passeavam por seus cachos, seguindo o ritmo da maré, quando Letícia perguntou, num átimo de consciência no meio do sono:

– Pai, esse barulho é chuva?

– Não, filha… esse barulho são as ondas batendo na escadinha do quintal.

Ela então respirou fundo e disse:

– Gosto desse barulho… – e, finalmente, o sono dominou a menina pequena que fazia travesseiros dos meus braços.

Naquele momento, quando acordado vi um sonho se realizar, percebi que a construção da memória dos filhos é algo sagrado, tijolo por tijolo feito de nossos erros e acertos. De momento tristes e felizes. E que importa, sobretudo, o saldo positivo.

E ali, soube que Letícia gostará do Marajó, num vínculo que jamais será desfeito; e que ela sempre lembrará dos braços do pai, no meio das noites escuras; e que ela sempre vai amar o barulho das ondas, porque foi no aconchego do meu amor que ela descobriu que o barulho das ondas é bom.

Seja o primeiro a comentar!

Deixe um comentário

Conteúdo Relacionado

Nossos Parceiros