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Ouvi que um cara famoso em um famoso programa de TV disse, esses dias, que bateu no filho pequeno, o deixou com lábio inchado e ele nunca mais foi mal educado.

Me lembrei imediatamente dos anos 70, quando alguns achavam ok bater em gays e diziam publicamente que estes precisavam apanhar para largar a “opção de vida”. Ou dos anos 80, quando se aceitava que maridos batessem nas esposas e ainda se dizia: “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

Bater em crianças é uma daquelas coisas que a sociedade ainda acredita ser assunto íntimo. “Ninguém deve se meter na criação dos filhos dos outros”, dizem. Mas esses filhos vão crescer e conviver com nossos filhos e netos. Todo mundo deveria se meter na criação do filho dos outros. Deveria ser um assunto público. Deveríamos ter todo interesse em como nossos vizinhos e conhecidos estão criando seus filhos. Deveríamos todos nos meter.

A criança que apanha, ou sofre gritos e castigos, vai passar essa violência adiante. Com um irmão menor, um colega de escola, um amigo. Ou pior, vai guardar a mágoa dentro de si, se transformando em um adulto que se sente injustiçado pelo mundo e pela vida. Um marido que explode. Um pai violento. Uma hora esse tapa vai voltar. Talvez em alguém que a gente ama.

Convido qualquer pessoa a substituir a palavra “criança” por qualquer outra. Tipo: “Minha esposa me respondeu de forma desrespeitosa e dei um tapa na cara dela. O beiço dela ficou todo inchado, parecia o Patolino, hahaha. Nunca mais me respondeu”. Coloque ali “avó” ou “colega” ou “funcionário”. Um comentário como esse ia passar despercebido? Diriam que cada um tem seu jeito de educar? Uma criança é um ser inferior, que merece ser tratada como nenhuma outra pessoa merece?

Nos últimos anos, evoluímos em tantas questões. Aprendemos a respeitar, conviver e até amar, rompendo com nossas crenças mais antigas e enraizadas. É possível criar filhos sem violência. Basta tratá-los como tratamos as outras. Crianças são pessoas, pequenas, lindas, indefesas. Deveriam ser honradas. Jamais agredidas.

Não tenho mágoas de minha mãe por ela ter me batido algumas vezes. Lembro de cada uma das vezes em que isso aconteceu, mas não lembro o motivo. Alguma molecagem. Ela me mandou pro quarto, esperei sabendo que viria bronca. Ela entrou com um cinto. Lembro que me bateu com raiva. Não sei se era a raiva que nos dá por trabalhar tanto, a raiva de estar cansada, a raiva de ter um filho que não obedeceu algo simples. A raiva de ser mãe solo, a raiva de ter que fazer tudo sozinha. Talvez era a raiva que os pais têm de verem os filhos com uma vida tão melhor do que eles, quando eram crianças, e mesmo assim as crianças não percebem como são afortunadas. Raiva da ingratidão infantil.

Se minha mãe me bateu, foi porque apanhou da própria mãe, e assim por diante. Quanto mais voltamos no tempo, mais perversos eram os castigos. Cada geração foi aliviando a palmada, mas ao mesmo tempo sentindo esse ódio da ingratidão dos filhos, que não percebem como sofrem pouco.

Ela deve ter colocado tudo pra fora aquele dia, porque nunca mais me bateu daquele jeito. Pediu desculpas. Nas outras vezes, não queria me bater. Entrava no quarto com o cinto, eu sabia que ia apanhar, ela dava algumas batidas fracas e eu fingia que eram fortíssimas, gritava como se estivesse doendo. Ela saía do quarto e eu ia dormir, ambos satisfeitos com nosso teatrinho.

Acho que foi um fenômeno dos anos 80, a proliferação de literatura sobre criação de filhos. A maioria dos autores recomendava algumas palmadas e castigos. Mesmo as mães que não queriam bater nos filhos se sentiam obrigadas pois, se não batessem, os filhos cresceriam pestes.

Todos nós levamos algumas palmadas quando criança. Não temos mágoas de nossos pais, achamos que foi importante apanhar. Mas respeitamos e admiramos nossos pais por outros motivos. Inclusive, por nos baterem sem querer nos bater. Respeitamos e amamos nossos pais por terem feito aquilo desejando o nosso melhor. Ou seja: o que nos educou foi o amor deles, a preocupação deles, a crença de estarem fazendo a coisa certa. Não a palmada. Eu e você, somos boas pessoas, não porque apanhamos. MAS APESAR DISSO.

A violência nunca educa.

Quando criança, tive dois amigos que apanhavam muito, a Kátia e o Mateus. Eles não se conheceram, estudavam em colégios diferentes, moravam em bairros diferentes, tinham classes sociais diferentes. O único ponto em comum que eu percebia nos dois era a violência dos pais. A mãe do Mateus dava socos nele e nos irmãos, na frente das outras crianças. A Kátia sofria castigos imensos, a mãe a obrigava a comer pimenta caso ela questionasse uma ordem.

A rigidez só gera mais rigidez. A violência só gera mais violência. É impossível ensinar respeito à alguém desrespeitado-o. É impossível ensinar bondade com maldades.

Hoje, sabemos que palmadas e castigos não funcionam. Revoltam os filhos, pioram a relação familiar, evoluem para violências maiores e mais perversas. Sabemos que é possível educar filhos sem gritos e castigos. Quando ouvi isso pela primeira vez, pensei: “Será?”. Palmada, gritos, castigo e privação pareciam funcionar para educar minhas filhas.

Até que percebi que meus gritos só me distanciavam delas. Elas não me respeitavam mais, se revoltavam. A mais velha chorava de raiva, a mais nova me pedia pra nunca mais gritar. Elas não estavam cultivando respeito por mim. Elas estavam com medo. Cheio de remorso, mas ainda desconfiado, comecei a educar com respeito. Evitar gritos. Repensar regras. Abolir castigos. Me tornei amável. Elas passaram a ter mais prazer na minha presença. Deixei de ser temido, passei a ser amado. Ao ser amado, passei a ser respeitado.

Mateus e Kátia, meus amigos de infância, cresceram revoltados e quebrados por dentro. Lembro do Mateus crescendo um adolescente retraído. A Kátia, muito carente, engravidou cedo. Os dois tiveram problemas com drogas.

Os pais são a fortaleza afetiva dos filhos e cada vez que esse acordo é quebrado, se quebra a alma de uma criança. Recolher os cacos dá muito mais trabalho do que preservar essa alma intacta. A alma de uma criança, tão boa e inocente, não tem culpa se nossa própria alma está cheia de rachaduras. A violência nunca educa.

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